Eu sou a ovelha negra da família
Há algum tempo, deixei minha casa com um gato recém-adotado — que, convenhamos, é a coisa mais fofa do mundo—para viajar até o Ceará e rever minha família materna.
O que deveria ser uma experiência agradável acabou se tornando um inferno.
Primeiro, porque eu nem queria ir, mas, como já mencionei em outros textos, aprender a dizer "não" foi um processo longo e doloroso para mim.
Segundo, porque minha família do interior do Ceará parece ter parado no século XVI—e, com isso, carrega um racismo enraizado que persiste de geração em geração.
O problema do racismo é que ele nem sempre se apresenta de forma explícita. Muitas vezes, ele se esconde em ambiguidades, sutilezas e duplos sentidos que nos deixam sem saber exatamente como reagir. Afinal, não quero ser vista como a "militante chata" que corrige todo mundo o tempo todo, mas também não quero abrir espaço para ser desrespeitada. Quero ser tratada com o mesmo carinho e admiração que minhas primas brancas recebem.
O fato é que eu já fui preparada para isso. Não sou ingênua e há tempos percebo que um "Nossa, você é uma morena linda!" dito com um tom de alívio não é um elogio. É, na verdade, um consolo. Um jeito de dizer que, apesar de ser a negra da família, ao menos não sou tão escura assim. "Café com leite", "morena clara", "desbotada", qualquer termo serve, desde que não seja "negra", como se essa palavra fosse uma sentença de inferioridade.
Mas, nessa última viagem, essa situação se superou e em vez de passar 20 dias no calor do sertão tomando sorvete e visitando tias cujos nomes mal lembro, acabei vivendo na pele o racismo enquanto estrutura social e meu tom de pele virou assunto central das conversas.
"Você não é bonita porque é negra"
Para contextualizar, eu não sou retinta. Sou a clássica "parda paçoquinha" que, ocasionalmente, usa o cabelo liso. Sei que pessoas mais retintas passam por situações muito mais duras, mas ainda assim acho importante registrar a minha dor.
Com uns cinco dias de viagem, um velho amigo da minha mãe apareceu para visitá-la. Minha mãe, que adora exibir os filhos, me puxou pelo braço para mostrar como eu tinha crescido. Em meio à conversa, ela sentiu a necessidade de perguntar se eu era bonita.
A resposta foi curta e direta.
Minha mãe, branca e loira (ainda que de farmácia), continuava linda. Já eu? Não, porque eu era negra.
Isso não foi dito na minha cara, mas foi um comentário sussurrado que escapou alto o suficiente para que todos ouvissem.
Minha mãe chorou por horas depois (mas só após sorrir para ele, passar um café e continuar fazendo sala) Porque é assim que funciona: a nossa dor pode esperar. O conforto dos outros, não.
Mas, naquele dia, minha raiva maior foi dela.
Nem toda pessoa branca sabe criar um filho negro
Pode parecer polêmico, mas falo com a propriedade de quem vive isso: se relacionar com uma pessoa negra não torna ninguém isento de racismo. E nem toda pessoa branca está preparada para criar bem um filho negro.
Minha mãe é um exemplo disso. Ela gosta de homens negros e até teve uma filha com um, mas nunca soube me proteger dos comentários cruéis da família dela. Nunca me ensinou a amar meus traços.
Então, quando aquele homem me machucou (porque, sim, senti minha autoestima bem machucada), o que me doeu mais foi minha mãe ter permanecido ali, servindo café para ele.
Mais tarde, quando a confrontei sobre isso, ela explodiu. Começou a brigar com todo mundo que já havia sido racista comigo. Mas aí já era tarde. Durante os próximos 15 dias, fui vista como "a coitada que não aguenta um comentário".
Como construir autoestima sendo a única negra da família?
Não quero me aprofundar demais nessa viagem, porque há sentimentos que prefiro não revisitar. O que posso dizer é que foi uma experiência tão difícil que, após anos, me fez voltar para a terapia.
A grande questão que fica é: como pessoas negras, criadas em famílias majoritariamente brancas, conseguem construir autoestima?
Minha família paterna não foi um refúgio para mim. Minhas referências de negritude vinham da TV, mas isso pouco ajudava quando minha avó fazia comentários depreciativos sobre cada atriz negra que aparecia na novela.
A mensagem era clara: ser negra é ruim. É feio. É desagradável. Mas, ainda bem, eu nasci só "moreninha".
Só que, mesmo assim, ainda era morena demais para ser tratada como minhas primas brancas.
Viver em um ambiente branco, cercada por referências brancas, distorce a nossa percepção de nós mesmas. Como nos acharmos bonitas quando somos as únicas diferentes? Como não sentir que precisamos ser uma versão inatingível da Beyoncé, que possui nariz fino e cabelo loiro, para sermos aceitas como negras?
O racismo me feriu profundamente. Desde o bullying que sofri na escola devido ao meu cabelo até momentos como esse, que me fazem lembrar o quanto ainda estamos longe de uma sociedade realmente avançada.
Há apenas 138 anos, eu sequer poderia estar escrevendo isso. Poderia sequer estar sendo lida. Isso é muito pouco tempo.
Construindo referências negras
Um ato importante para resgatar minha autoestima foi tentar reduzir o consumo de conteúdos que me faziam sentir inferior. Eu passava horas acompanhando meninas brancas e magras, comparando minha aparência com a delas, sempre me sentindo menor. Agora, quero fazer o contrário: quero consumir conteúdos de mulheres negras, encontrar referências que se pareçam comigo.
Aliás, se você conhece alguma criadora de conteúdo negra, me indica nos comentários.
Referências de cabelos afros também são muito bem-vindas! (Nataly Neri foi uma mãe para mim nesse processo). Quero aprender a me sentir bonita com o meu cabelo natural, sem achar que só estou arrumada ou com uma aparência profissional quando aliso os fios.
Quero conhecer, ter referências e consumir conteúdo de quem se parece comigo. Quero aprender a ser bonita sendo eu!
Então, você, menina negra que leu até aqui e se identificou: você se parece com quem você segue? Se não, está na hora de mudar isso.
Esse é o meu manifesto!
Nátaly Neri
Toda beleza é única!
Obrigada a você que leu até aqui. O texto de hoje foi mais um desabafo do que algo voltado à psicologia em si.
Mas, se quiserem, posso fazer uma nova publicação sobre como isso nos afeta cognitivamente.
E se você ainda não me conhece, sou Vitória Araruna, estudante de Psicologia, e escrevo essa newsletter onde relato meus desabafos cotidiano.
Seu texto está incrível, me identifiquei um pouco mesmo não vindo ee familia branca, ambos mesmo pais são negros meu pai retinto e minha mãe mais clara, porém foram anos pra minha mãe deixa eu usa meu cabelo solto pois era mt "cheio" ela fazia umas chiquinhas e dedoliss e eu amava, mas eu olhava minhas amigas todas brancas, de cabelo liso ou ondulados e ficava "meu Deus eu seria bem mais bonita com cabelo assim", depois que tornei adolescente quis começar a deixar meu cabelo solto, mas minha mãe sempre ia passar mais creme pra abaixar o volume, ainda hoje se deixo meu cabelo sem finalizar ela fala "vai finalizar esse cabelo não", mas melhorou a forma como ela vê cabelos volumosos (bem pouco, mas melhorou).
O seu texto tá incrível, diva! Um assunto tão difícil, e você escreveu de forma tão lúcida, direta. Você escreve bem pra krll. E não sei se você conhece, mas eu sigo a @ellatascine no insta, e ela é uma influenciadora maravilhosa! Recomendo. Parabéns pelo seu texto, e sinto muito que você tenha que passar por isso.